Breves e novos contornos do processo administrativo sancionador | Por Rodrigo Sardenberg

Pautada a Audiência Pública da regulamentação de um Processo Administrativo cada vez mais Penal

A penúltima semana de junho de 2018 soprou novos ares na realidade do processo administrativo no tocante à regulação do mercado de capitais brasileiro. As novas notícias vieram pela instrução da Comissão de Valores Mobiliários, que vai regulamentar a aplicação da Lei n˚ 13.506 de 13 de novembro de 2017 no lançamento da audiência pública promovida pela autarquia.

As novas regras a serem aplicadas nos procedimentos de atuação da CVM mostram que a tendência de movimentos mais rigorosos na apuração de ilícitos já é uma dinâmica da vida real. Essas regras vêm acompanhadas de novidades relacionadas à dosimetria e à própria sanção administrativa, com determinações que aumentam a multa a ser aplicada pela autarquia, passando seu valor ao limite de R$ 20 milhões em se tratando de pena-base, chegando até R$ 50 milhões com o acúmulo de agravantes, que também passa a ter uma nova sistemática.

Também serão parâmetros para a aplicação da multa o valor da emissão ou da operação irregular, cuja aplicação pode ser em até o dobro deste; o montante da vantagem econômica obtida ou da perda evitada em decorrência do ilícito passa a ter aplicação de até o triplo deste; e o prejuízo causado aos investidores em decorrência de ilícito, que até o dobro deste vai ser imposto pela decisão.

Diante das noveis penalidades, estabelece o artigo 64 da nova instrução que a dosimetria da pena será fixada a partir da pena-base, passando à análise das novas agravantes e atenuantes, chegando à terceira fase de aplicação de também novas minorantes. Percebe-se o movimento de aproximação bastante irmanada ao sistema trifásico do Código Penal brasileiro.

Determina o artigo 5˚ da Lei que as penalidades poderão ser aplicadas de forma cumulativa, ou seja, além da aplicação da multa em seus novos valores, do processo ainda pode ser acrescentada pelas penas de proibição de atuar no mercado financeiro, seja nas formas de inabilitação por até 20 anos para exercer cargo de administração ou no conselho fiscal de companhia aberta, de entidade do sistema de distribuição ou de outras entidades que dependam do filtro permissivo da CVM (inciso III); pode-se decretar a suspensão da autorização ou registro para o exercícios das atividades que são regulamentadas pela Lei 6.385 de 1976, que criou a autarquia (inciso V); proibir temporariamente por até 10 anos a atuação direta ou indireta em uma ou mais modalidades de operação no mercado financeiro (inciso VII); ou, a proibição por até 20 anos de praticar determinadas atividades ou operações (inciso VI), está sendo a mais problemática, uma vez que exige-se do texto normativo, pelo respeito ao princípio da legalidade, sua redação certa e determinada, evitando aplicação de penas de caráter subjetivo.

Portanto, é de se notar que o processo administrativo vem tomando caminhos mais rigorosos no seu exercício, exigindo cada vez mais dos seus atores atenção, senso crítico e cuidado ao se verem inseridos na relação processual. A afirmação é corroborada pela aproximação que se está passando a ter com o processo penal, que também tem sua pauta de mudanças significativas deste tempo de enforcement.

No processo penal, das diversas teorias da ação que se propõem a explicar e fundamentar o dever/direito de movimentar o poder judiciário, uma respeitabilíssima interpretação é dada por Goldshmidt[1], que define o processo a partir da dinâmica do estado de guerra, uma vez que direitos e garantias fundamentais ao cidadão em face ao Estado estão na “ponta da espada”, visto que convertidos em expectativas de direitos, havendo por possibilidade eventual aniquilação daquilo que se prestaria a ser intangível.

Logo, desta novel instrução posta em audiência pública pela CVM, vê-se o novo processo administrativo sancionador de mãos dadas ao processo penal. A dinâmica mencionada acima tem por lógica a mudança da relação estática de segurança jurídica para ver-se presente na epistemologia da incerteza[2].

E é neste estado de incerteza que se pairam algumas questões consequentes de tal instrução em comento. A primeira delas é quanto a extensão dos benefícios concedidos pelo acordo de leniência firmado no âmbito do processo administrativo e sua incidência no processo penal. O Diretor Geral da CVM, Henrique Machado, afirmou que em ocasião de a conduta também estiver sob processo penal, caso o acusado não provoque o Ministério Público Federal para obter a extensão, o trânsito será feito automaticamente pela autarquia[3].

A medida vem em conformidade com uma recente decisão proferida pelo Juiz Sérgio Moro no curso da Operação Lava Jato, que, por coibir o uso de provas prejudiciais aos acusados oferecidas por estes, enquanto colaboradores no processo penal, pudessem gerar efeitos também em prejuízo a eles enquanto réus em ações administrativas, causou mal-estar entre os membros[4].

Esse tipo de comunicação direta entre órgãos para incidir efeitos de mecanismos próprios de cada sistema processual exige um acompanhamento cuidadoso por aqueles que se dedicam ao assunto. Isto porque, também foi afirmado pelo Diretor da Comissão que haverá um intercâmbio de informações dada ao âmbito de cooperação entre os dois[5]. Ora, informação tanto é meio quanto prova. É pela informação que se gera vantagem processual. Sendo assim, como poderá ser legítima[6] e legal as provas que dessa troca surgirem? Essa é a questão que CVM e MPF deverão responder ao longo dos próximos dias, enquanto se decidirem pelo formato disto, já que depois da rejeição da PEC 37, está garantido ao Ministério Público amplos poderes investigatórios.

Por fim, para uma última reflexão, põe-se em tela o artigo 68 da instrução, que trata sobre as circunstâncias atenuantes à pena. Ao longo de seus cinco incisos, nota-se que algumas questões estão controvertidas. Primeiro, o inciso IV prevê como uma dessas circunstâncias que atenuam a pena é a boa-fé dos acusados. Verificada essa atenuante, sua redução de 10 a 20% na multa depende de um conceito subjetivo que sua definição na norma foi deixada de lado.

A última circunstância atenuante prevista neste dispositivo foi a “adoção efetiva de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades, bem como a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”. Excetuando o simbolismo de ser a última circunstância prevista, também enfatizando a importância que os mecanismos de integridade e compliance vêm tomando na realidade do mercado privado e nos processos administrativos e penais, deve-se sopesar a seguinte questão: qual será, de fato, o valor que será dado a todo o complexo de medidas que se exige para um efetivo programa interno de integridade?

Merece razão esta preocupação, tendo em vista que, diante da confissão do ilícito ou a prestação de informações relativas à sua materialidade prevista no inciso I do mesmo dispositivo, qual será mais objetivamente relevante? Não se questiona em valores de atenuação à pena, visto que seus parâmetros são congelados pelo § 3º entre 10% e 20% para cada circunstância. Mas questiona-se no âmbito dos movimentos investigativos e processuais. Os órgãos deverão direcionar seus esforços a atingir qual resultado? A confissão ou a análise dos programas de integridade? Como será a análise para verificar a eficácia dos mecanismos? Como será o sopesamento da importância destes mecanismos na aplicação da margem de atenuante à pena?

Abrindo estas questões acima que o presente artigo dar-se-á por encerrado. O momento atual é cautela e preocupação, em busca de soluções e respostas, mas igualmente cautelosas e preocupadas em acompanhar a demanda pelo desenvolvimento de ferramentas de controle e de processo que não atropelem garantias fundamentais e as bases democráticas e republicanas que fundam o processo. Por ora, pode-se afirmar que a movimentação tem sido feita para atender interesses. Não sabe-se ainda de quem(s). Estejamos alertas ao que o desenvolvimento exige.

Por Rodrigo de Castro Sardenberg.

Artigo de opinião publicado originalmente no site Jota.

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[1] Apud, LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 91-92
[2] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 92
[3] “Para o diretor Henrique Machado, em caso de crime, caso o proponente não procure o MP primeiro, a autarquia vai automaticamente ao órgão de persecução estender o benefício” https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/compliance-reparacao-danos-multa-cvm-18062018
[4] https://painel.blogfolha.uol.com.br/2018/06/21/agu-indica-que-vai-recorrer-de-decisao-de-moro-que-blindou-delatores/
https://oglobo.globo.com/brasil/ministro-do-tcu-chama-de-carteirada-decisao-de-moro-de-vedar-uso-de-provas-da-lava-jato-22782673
[5] “Segundo o diretor, o trâmite concreto do envio de informações ao MP ainda deve ser discutido dentro no âmbito da cooperação existente entre a CVM e o órgão. “Para dar mais transparência a esse procedimento, parece que é possível algum aditivo no convênio”, explicou.”. https://www.jota.info/tributos-e-empresas/mercado/compliance-reparacao-danos-multa-cvm-18062018
[6] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Elsvier, 2014. p. 283-285

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