Artigo: Motivos para descriminalizar | Por Filipe Sodré
Atualmente, na legislação brasileira, o porte de maconha (não só de maconha, mas de entorpecentes em geral) destinada a consumo, embora ainda seja criminalizado, não prevê pena privativa de liberdade a ser aplicada, mas sim outras de menor rigor. A nova Lei n. 11.343/2006 é visivelmente benéfica para o usuário, visto que não há mais previsão legal de prisão como pena – o traficante, entretanto, teve a pena mínima aumentada no novo diploma, de 3 para 5 anos.
Este primeiro aspecto já permite entrever o discurso ideológico que se mostra neste tipo penal, profundamente marcado por visões de classe, ainda mais pelo fato de a lei deixar a cargo do juiz a diferenciação entre o traficante e o usuário no caso concreto. A prática forense e estudos sobre o assunto evidenciam que os acusados provenientes de classes baixas, predominantemente de cor negra ou parda, tendem a ser considerados traficantes, enquanto acusados de classe econômica média ou alta, de cor branca, tendem a ser considerados usuários.
Noutro diapasão, a tutela penal do consumo (e do tráfico) de drogas se faz com base na proteção da Saúde Pública. Porém, tal proteção é desnecessária e, mais do que isso, violadora da liberdade pessoal do indivíduo, que tem (ou deveria ter) controle sobre o seu corpo e sua saúde. Como se vê em praticamente qualquer manual, o Direito Penal não pune a autolesão. É preciso que o comportamento criminalizado possua um mínimo de ofensividade, ou seja, capacidade de produzir um dano social significativo, externo ao indivíduo. Com efeito, em relação à substância em si, não podemos conceber que haja perigo maior no consumo de maconha do que de cigarro e álcool. Não há, portanto, racionalidade ou proporcionalidade na proibição, uma vez que ela não ocorre levando-se em conta apenas o potencial lesivo da substância, mas também por outros motivos que não são expressos (como o peso da indústria tabagista e de bebidas).
Nem se diga, a este respeito, que o uso de maconha funciona como uma espécie de “degrau” ou etapa inicial para o consumo de drogas mais potentes e degradantes. Na verdade, a experiência nos permite concluir que esse efeito é decorrente da própria proibição, e não da substância. O sujeito que pretende consumir a substância só tem acesso a ela por intermédio de operações proibidas e, por isso, perigosas, sendo-lhe oferecidas, nesse meio, substâncias mais fortes que também são vendidas ilegalmente a preços mais baratos (como o crack), mais destrutivas, às quais o indivíduo não teria normalmente acesso, nem interesse em consumir, caso o mercado fosse legalizado. Não apenas isso, mas eventuais efeitos nocivos à saúde do consumidor são potencializados justamente pela criminalização.
Por estas razões, acreditamos que o consumo de maconha (e de outras drogas atualmente ilícitas, aliás) deva ser descriminalizado. Descriminalizar não significa incentivar, nem liberar indiscriminadamente. Acreditamos que uma política de Estado responsável deve regular o consumo, limitar a propaganda e auferir benefícios dessa regulamentação, substituindo custos em repressão por arrecadação tributária que pode ser revertida em programas de saúde e educação. Assim, fundamentalmente, cremos que a descriminalização é um passo a ser dado para um maior respeito ao indivíduo e às liberdades fundamentais do cidadão.