Artigo: Ainda temos artistas | Por Aluízio Sueth Junior

Berlim, Alemanha, 6 de maio de 1933.

As Divisões de Assalto (embriões da SS) do recém-instituído regime do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, os quais se impunham aos inimigos do que veio a ser o Terceiro Reich, invadem o Instituto de Ciências Sexuais e apreendem o acervo de sua biblioteca num ato de resgate moral.

Quatro dias depois todo esse compêndio, juntamente a uma montanha de outras obras que totalizavam mais de 45.000 exemplares, foi incendiado em praça pública, marcando um dos momentos mais infames da história do pensamento infligido pela censura. Uma declaração de guerra aos intelectuais e artistas “degenerados” daquela época. Era o início do horror nazista.

São Paulo, Brasil, 26 de setembro de 2017.

Militantes conservadoristas exortados pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e por membros da bancada evangélica do Congresso Nacional promovem virulento patrulhamento moral no 35º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna (MAM) – chegando a agredir funcionários da casa -, com acusações de incitação à pedofilia através da performance “La Bête”, do coreógrafo Wagner Schwartz.

Ali, o artista propunha seu corpo nu em interação não erótica com o público, momento em que uma criança, acompanhada da mãe, tocou em sua perna e mão. Foi o bastante para que os discursos de ódio inflamassem as redes sociais, brandindo censura. Uma declaração de guerra aos intelectuais e artistas “degenerados” de hoje. É o início do horror…

Deve-se afastar qualquer acusação de alarmismo nesse paralelo, vez que o fato, apesar de aberrante, não é episódico. Reiterados eventos, num curtíssimo espaço de tempo, foram assinalados por idêntico modus operandi dessas blitz moralizadoras a ganhar intensa repercussão nacional.

A exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” foi cancelada em Porto Alegre no início do mês passado e posteriormente foram interrompidas suas negociações com o Museu de Arte do Rio (MAR), com intervenção direta do prefeito missionário Marcelo Crivella, o que configura perigoso ensejo para a institucionalização de ações cada vez mais autoritárias em momentos de acirrada polarização política: o confisco do pensamento e anulação do diferente (leia-se: minorias).

Notadamente, é a autonomia dos fazeres intelectuais e artísticos (justamente por atuarem na vanguarda da leitura e discussão de mundo) o termômetro que mede a saúde democrática de um país. Ainda que os sinais de embrutecimento das instituições republicanas, marcadas por reiteradas agressões às liberdades e garantias individuais, venham já se enraizando desde o falaz impeachment, é a partir do destemor em empreender perseguição pública às linguagens progressistas, em especial dos artistas por encerrarem em sua razão de ser a própria expressão livre da vida através da arte (“interpretadas” pelos moralistas como perversões), que as soluções de força, como muito bem já salientou Rubens Casara, se disseminam difusamente.

Contudo, mesmo a barbárie buscou suas legitimações ao longo do tempo. Tal aspecto necessariamente deságua em simplificações que, de uma forma ou de outra, maquiam um inimigo a ser combatido; um paradigma simbólico que busca, a todo o momento, aliviar as consciências do senso comum platônico/judaico-cristão ao divisar as pessoas em boas e más, sendo os maus identificados pela figura do outro diferente, portanto eliminável (criminalizável).

Essa lógica binária cunhou todos os regimes totalitários conhecidos, os quais, através do uso aglutinador da propaganda pela máquina pública, se apropriam da real prerrogativa do sistema penal, que não é a imposição de pena em si como rotineiramente se imagina, “mas sim o poder de vigiar, observar, controlar movimentos e ideias […] privar de liberdade sem controle jurídico[1]”.

Ao radicalizar o clamor pela censura (disfarçada de “boicote”), acaba por se atarraxar o parafuso elementar da engrenagem punitiva. A princípio imposto aos segmentos críticos e de agitadores culturais, esse ato castrador tem como objetivo, lato sensu, a chancela aos desmandos do estado policial.

Dessa forma, o exercício democrático cede à violência estrutural, servindo para a eliminação de tudo o quanto afronta os valores tradicionais que coincidem com os interesses dos detentores de privilégios – os quais impostos pelas sociedades capitalistas contemporâneas, constituídas com a finalidade de preservação das relações sociais desiguais[2] -, e gerando conivência para com as arbitrariedades.

Intenta-se vigorar, a todo custo, a perpetuação de uma determinada lógica dominante, interligando, ao final, toda a sistemática das agências de persecução penal para esse objetivo: conduções coercitivas, midiatização da imposição de prisões cautelares fantásticas, flagelos psicológicos e físicos para estímulo de denuncismos, relativização e suspensão de garantias, supressão de ideologias políticas díspares etc.

O que se afere, em suma, é o cenário ideal ao exercício máximo de gestão disciplinar, cujo efeito multiplicador fragiliza a capacidade de resistência da população.

Sob a égide da censura a sociedade atrofia-se, uma vez que se fomenta a opressão; uma vez quase dá azo ao ato de truculência final (entre os muitos já efetivados gradativamente) do começo de qualquer retrocesso civilizatório. Todo estado tirânico alcançou o clímax de violências quando institucionalizou o silêncio/adesão.

Enquanto as ciências, genericamente, se concebem como evidências transitórias sustentáveis apenas até que outras novas as desautorizem em nome do progresso humanístico, é próprio do direito penal, e, por consequência, da censura, a regressividade. Por isso, via de regra, aqueles que encampam suas exasperações tendem a desprezar as conquistas civilizatórias desde que as hegemonias classistas decorrentes do processo de controle social do outro,empreendidas pelo “capitalismo/poder de punir” permaneçam intactas, ainda que isso implique em maior subserviência às próprias ingerências dos governos, que “são a prova de como os homens podem ter sucesso no ato de oprimir em proveito próprio, não importando se a opressão se volta também con­tra eles[3]”.

Com o estímulo da intolerância, as instituições oficiais se apressam a monitorar e coibir. Ao final, esse ato censor oportuniza e traz em si o chamamento à cultura punitiva, repisando truculências de uma ordem jurídica que “não suporta limites, transforma-se num sistema penal sem fronteiras, com a tortura como princípio, o elogio da delação […]” e, por fim como fruto derradeiro, “[…] a execução como espetáculo[4]”. O padrão cíclico se repete e o esfacelamento das liberdades através da “policialização da vida”, como cravou Vera Malaguti, é a maior consequência.

Todos esses episódios têm em comum a imposição desmedida do binômio censura/sanção. No caso em exame, a censura que recai, inclusive, e particularmente, sobre o corpo como forma de conservação da alma pura (ou como propôs Deleuze a partir dos estudos das potências corporais: a mortificação do corpo, atribuindo-lhe vergonhas e imundícies insuportáveis aos olhos[5]).

Recorre-se, mais uma vez, aos expedientes da esterilização, falseando um “direito de protestar” contra essas exposições artísticas “sujas” quando na verdade não passa da utilização da força, pura e simples, sob outros matizes repressivos.

De forma antidemocrática, busca-se naturalizar a todos os entornos da sociedade acepções morais a título de culpa, ressentimento, renúncia e arrependimento – próprias do cristianismo –, que geram projeções negativas de si mesmo (enquanto corpo identitário que a tudo percebe, deseja e dirige) para se livrar da “danação eterna pelo pecado/impureza”.

Para tanto, o que eterniza-se, de fato, é o ideal punitivista, inspecionando até mesmo as instâncias da contemplação artística e o livre pensar a respeito desse corpo voluntariamente revolucionário – mas deturpado como degradante, principalmente se nu – como forma de facilitar o controle de suas capacidades criativas e intensidades.

A censura a toda e qualquer manifestação artística (mormente aquela expressa nesse corpo que, quando livre, desestabiliza na essência a lógica do estado policial) é, antes de tudo, um ato retrógrado, reafirmador de preconceitos, e sim, inexoravelmente fascista e medieval. Definitivamente, a partir disso, nosso horizonte parece divisar muitos passos para trás com o levante dessa aguda onda conservadora que se tem constatado.

Num momento onde os lugares de fala, de pouco em pouco, têm sido protagonizados pelas minorias empoderadas, as quais têm exercido cada vez mais produção de conhecimentos e simbolismos específicos, as quais têm crescido em capacidade emancipatória e consolidação na ocupação de espaços inéditos dentro das disputas nas relações de poder, torna-se sintomática a reivindicação pelo aumento de represálias lastreadas em requentadas acusações de “conteúdos pornográficos” atentatórios à dignidade das “pessoas de bem”.

Também é sintomático que a intolerância agrave as perseguições aos trabalhos artísticos de forma tão incisiva, debilitando até mesmo esses espaços habituados a resistência.

É sintomático, sobretudo, que a história seja revisitada na carcaça do monstro da lagoa, o qual se queria imaginar afogado, mas que está sempre pronto para emergir, como já diria o cancioneiro. Pelo menos, ainda temos os artistas, a revelar esse lobo mofado que se aproxima novamente em pele de cordeiro, como muito bem alertava Brecht em sua “Parada do Velho Novo: “Eu estava sobre uma colina e vi o Velho se aproximando, mas ele vinha como se fosse o Novo. […] E o grito: Aí vem o Novo, tudo é novo, saúdem o Novo, sejam novos como nós! seria ainda audível, não tivesse o trovão das armas sobrepujado tudo”.

Não se trata de exposições de nudez pelo Brasil, mas da exposição da nudez de um Brasil ainda autoritário, pudico e desigual. E é precisamente por essa nudez sem rodeios ter tanto a revelar que a querem cobrir e calar; perseguir e aniquilar. De novo.

 

Aluízio Sueth Junior é advogado criminalista do escritório Peter Filho, Sodré & Rebouças e membro do Instituto Capixaba de Criminologia e Estudos Penais  (ICCEP) e do Movimento Advocacia pela Democracia (MAD)

 

Referências:

[1] E. Raul Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia, Alejandro Slokar. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 4ª edição.
[2] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: Parte Geral. Florianópolis, SC: Empório do Direito, 7ª edição, 2017.
[3] THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. Porto Alegre/RS: L&PM Editores, 1997.
[4] MALAGUTI BATISTA, Vera.Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan. 2011.
[5] DELEUZE, Gilles. Espinoza e o Problema da Expressão. São Paulo: Editora 34, 1ª edição, 2017.

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