Artigo: Fetiche pelo crime hediondo, fetiche pela punição | Por Filipe Sodré

Poucas coisas são mais ilustrativas da pobreza do pensamento punitivo vulgar, no cenário legislativo brasileiro, do que o fetichismo envolvendo a ideia de crime hediondo, desde que foi inserida no inciso XLIII da Constituição Federal de 1988 e encarnada, dois anos após, no conteúdo da Lei 8.072/90.

De que se trata um fetiche? No dicionário, vemos que o vocábulo diz respeito a um objeto, animado ou inanimado, ao qual se atribuem poderes mágicos ou sobrenaturais (a própria palavra vem do francês fétiche, significando feitiço). O fetichismo, portanto, é esta atribuição de capacidades extraordinárias a determinada coisa, de uma maneira genuinamente irracional ou até mística.

Algo semelhante acontece no Congresso Nacional com relação às expectativas que os parlamentares nutrem sobre a inclusão de determinados crimes na categoria de hediondos. Nos últimos anos, incontáveis proposições legislativas, dos mais variados partidos, tramitaram no parlamento com o objetivo de ampliar o rol dos crimes hediondos previstos na Lei 8.072/90. As condutas que se pretende incluir são as mais variadas, desde a difamação eleitoral (PLS 266/2016, do Senador Magno Malta, do PR), passando pelo desvio de recursos destinados ao Bolsa Família (PLS 216/2015, do Senador Roberto Rocha, do PSB), até o ultraje e perturbação a culto (PL 1804/2015, do Deputado Rogério Rosso, do PSD), só para citar alguns exemplos.

A singeleza do pensamento fica evidente na justificativa de algumas propostas. Tomemos, por exemplo, o PLS 22/2016, do Senador Randolfe Rodrigues, da REDE, que, na esteira do desastre ambiental de Mariana e do Rio Doce, tenta criar e transformar em hediondo o crime de poluição com resultado morte. Diz a proposta:

“Não se pode mais tolerar omissões, comportamentos abusivos e negligentes por parte dos responsáveis por crimes ambientais, como o de poluição, de que resultam a morte de pessoas vulneráveis a empreendimentos de alto risco. Por tais razões, propomos que a poluição ambiental, de que resulte morte, seja considerada crime hediondo, alterando-se, também, a Lei de Crimes Ambientais, para aumentar a pena em dobro quando da poluição resultar morte”.

A intenção nos parece nobre, não há dúvida. Entretanto, não há como evitar a pergunta: o que a criação do tipo de poluição com resultado morte e sua, por assim dizer, hediondização, podem fazer para acabar com as “omissões, comportamentos abusivos e negligentes” na esfera ambiental? A Lei dos Crimes Hediondos, não custa lembrar, é ela própria um exemplo de má técnica legislativa, sendo objeto de análise e de declaração de inconstitucionalidade de várias de suas proposições repetidas vezes pelo Supremo Tribunal Federal. Hoje, concretamente, pode-se dizer que a maior reprimenda aos crimes ali elencados se compõe da proibição de anistia, graça, indulto e fiança, o requerimento de um lapso maior de tempo para progressão de regime prisional, além do prazo estendido na prisão temporária para até 60 dias. Será que essas restrições levam mesmo a uma maior proteção ambiental? Desnecessário dizer que nenhum dos projetos apresentados apresenta qualquer elemento dotado do mínimo de cientificidade nesse sentido. Por outro lado, os dados que temos desde o advento da Lei 8.072/90 nos fazem crer que essa esperança é totalmente ilusória.

Essa ideia peculiar de que transformar qualquer crime em hediondo possa ter algum efeito real na proteção das pessoas, ou de outras causas, é mais uma vertente de todo o simbolismo em que se transformou a legislação penal nas últimas décadas. O que caracteriza a política criminal simbólica é justamente o preocupar-se menos com a adequação e o cumprimento efetivo da lei e mais em gerar na opinião pública a impressão de um legislativo firme e atento. Logo, em um ambiente de verdadeira legislação placebo, meramente retórica, que tem por resultado tão somente o contentamento de políticos e eleitores, é natural que prolifere facilmente o fetiche, não só pelo crime hediondo, mas pela punição em geral.

Finalizando, uma outra acepção mais popular do fetiche, de cunho sexual, nos faz lembrar de uma expressão cunhada pelo sociólogo francês Loïc Wacquant, a pornografia penal, que sintetiza como tem funcionado nossa política criminal: diante de uma política de segurança pública baseada tão somente no absoluto espetáculo, as ações tomadas contra o crime acabam repetindo o modelo das conjunções carnais em produções pornográficas: “extraordinariamente repetitivas, mecânicas, uniformes e, portanto, eminentemente previsíveis”.

Artigo publicado originalmente no site Justificando.

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